Recentemente foi divulgada a imposição de uma multa pela Autoridade da Concorrência (AdC) a empresas do grupo SIBS, para sancionar uma alegada prática de abuso de posição dominante superior a 90% nos dados da AdC, designada por “tying” (vendas ligadas), relativamente ao processamento das transações com cartões no sistema de pagamento Multibanco.
Neste sistema de pagamento de origem portuguesa, o grupo SIBS, através de diferentes empresas é, simultaneamente, o gestor do sistema (“scheme”), o processador das transações e um dos adquirentes de transações de pagamento.
Isto contrasta com outros sistemas de pagamento com cartões de nível internacional (como são exemplos, a Visa e a Mastercard), onde as atividades de gestão do “scheme”, de processamento de transações, de emissão de cartões de pagamento e de “acquiring” das transações, estão repartidas por mais instituições financeiras e/ou tecnológicas.
Como funcionam os sistemas de pagamento de retalho (B2C)
A maioria dos sistemas de pagamento envolvem um fluxo operacional que tem, pelo menos, quatro contrapartes. Estas são: o consumidor que faz o pagamento, o comerciante que recebe o pagamento, uma instituição financeira que apoia o comerciante (o adquirente) e uma instituição financeira que apoia o consumidor (o emitente de cartões de pagamento).
Como a atividade de processamento de transações com cartões envolve avultados investimentos recorrentes em “software” e “hardware” é muito habitual que as instituições financeiras deleguem esta atividade num parceiro tecnológico. E foi assim em Portugal, em 1985, quando foi criado o sistema Multibanco que nasceu a SIBS.
Numa transação, o sistema é pago pelo comerciante que aceita o pagamento. Quem recebe essa comissão é o adquirente que, depois de pagar a comissão de processamento ao processador e outra (ainda de valor menor), de “assessement” ao gestor do “scheme”, reparte o remanescente com a instituição financeira que disponibilizou o cartão de pagamento (de débito ou de crédito, consoante os casos), ao consumidor. O valor que o adquirente tem de pagar, em cada transação, ao emitente é a taxa de intercâmbio que é uma percentagem do valor recebido pelo comerciante.
A comissão de processamento tem um valor muito baixo, em torno de um cêntimo por transação, por isso a escala de atividade mínima para um processador de pagamentos é enorme (cerca de 2.4 mil milhões de transações por segundo, dados de 2015) mostra a excecionalidade que foi para um país do tamanho de Portugal ter podido contar com uma empresa como a SIBS.
Já as remunerações, quer as do adquirente quer as do emitente, são mais significativas (e as exigências tecnológicas não são tão acentuadas), pelo que estes dois negócios têm escalas mínimas mais reduzidas e, por isso, existem muito mais instituições financeiras a desenvolver estas duas atividades do que processadores.
Todos os sistemas de pagamento dependem de dois efeitos de “rede”. No caso dos sistemas de pagamento com cartões também há duas “redes”. A “rede” de aceitação dos cartões, materializada nos TPAs e nas ATM (“caixas multibanco”), onde é possível pagar (e fazer outras operações) com cartões de pagamento.
A “rede” de utilização dos cartões é formada pelos consumidores que dispõem de cartões e que os utilizam para fazer pagamentos.
A “rede” de aceitação do sistema Multibanco é de âmbito nacional. Por isso, não é possível a um consumidor utilizar os seus cartões Multibanco no estrangeiro. Para obviar este problema a generalidade dos cartões são multimarca. Ou seja, têm funcionalidade em dois sistemas de pagamento que são o Multibanco e uma (das duas) principais marcas internacionais, Mastercard ou Visa.
O que vai mudar no futuro?
Ao nível do consumidor e do comerciante nenhuma alteração visível terá lugar. Isto porque o nome do processador das operações com cartão passa desapercebido apesar de estar indicado nos talões de recibo de pagamento emitidos pelos TPAs. E, por outro lado, o valor da comissão de processamento tem um peso muito reduzido na formação do preço que é cobrado ao comerciante pela aceitação de cartões de pagamento.
Ora o que provocou a redução acentuada das taxas cobradas aos comerciantes pelos pagamentos com cartão foi a limitação imposta pelo Regulamento (EU) 751 de 2015 ao valor que é pago aos emitentes de cartões pelos adquirentes, as designadas taxas de intercâmbio. Até aí estas taxas resultavam de uma negociação entre os a adquirentes e os emitentes e que, em Portugal, são as mesmas instituições financeiras com os inconvenientes que daí resultavam para uma negociação dessas taxas de forma verdadeiramente competitiva.
Foi este regulamento da EU que veio alterar significativamente a repartição de margem na cadeia de valor acrescentado dos pagamentos da atividade de disponibilização de cartões aos consumidores em direção à atividade de apoio à aceitação de cartões pelos comerciantes, em particular para aqueles de menor volume de faturação. E permitiu, por isso, o surgimento de diversas fintechs internacionais que tinham este segmento de mercado como alvo e alargaram consideravelmente a “rede de aceitação”.
Mas o que foi dito até aqui não deve ser interpretado como implicando que o alegado comportamento da SIBS que foi sancionado pela AdC não seria prejudicial para os consumidores e comerciantes. Porque a exigência que teria sido feita aos adquirentes estrangeiros, ligando a sua participação no sistema Multibanco à entrega do processamento das suas transações à SIBS, esse comportamento, a existir e persistir no tempo, iria dificultar a introdução de soluções de pagamento em Portugal mais inovadoras e mais imbuídas na jornada dos consumidores.
Ainda assim, do ponto de vista dos consumidores e dos retalhistas, as alterações mais visíveis que irão ocorrer no mercado de pagamento com cartão serão, a curto prazo, os novos serviços de “Confirmação do Beneficiário” e de “Proxy Lookup” e, posteriormente, a introdução do Euro digital. Mas sobre isso se falará noutra altura.